terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A imprensa sensacionalista e o direito à honra e à imagem

Salvo engano, acredito que a esmagadora maioria das emissoras regionais de televisão existentes Brasil afora possuem seu próprio programa policial, aquele que normalmente vai ao ar por volta do meio-dia, com um apresentador que logo virará deputado por algum partido de direita - ou simplesmente oportunista -, devido à enorme popularidade que adquiriu junto à camada mais despolitizada da população, bradando "pena de morte a esses vagabundos", utilizando-se de algum símbolo como uma vassoura ou um porrete, e - óbvio - sempre fazendo uma dancinha ou algo do gênero, o que lhe dá um certo ar de irreverência. Pois bem, na cidade em que vive este que vos escreve não é diferente.
Ainda nos idos de 2005, uma situação peculiar aqui tomou parte e gerou considerável repercussão. Apesar de ter chegado aos meus ouvidos o ocorrido, não havia tido a oportunidade de efetivamente assistir ao conteúdo transmitido pela tal emissora, o que me foi propiciado recentemente pelo fantástico mundo da internet.
Aos fatos. Em uma das edições do programa, um cinegrafista e uma repórter encontravam-se no batalhão de polícia - já explico a razão do grifo - fazendo imagens de um grupo de pessoas às quais se referiam como "marginais" e demais adjetivos do gênero. Tratando-os, enfim, visivelmente e como de praxe, como verdadeiros bandidos, buscando passar tal imagem dos mesmos aos telespectadores. Até aí nada de novo, mas aqui é que começa a ficar interessante. Qual foi a reação do advogado dos acusados ao se deparar com aquela afronta aos direitos constitucionais mais fundamentais de seus clientes? Ergueu-se defronte aos acusados, dando as costas à câmera, e, abrindo seu paletó, impediu o seguimento daquele abuso. Irresignado, o cinegrafista tentou, através de outros ângulos, literalmente colocar a câmera na cara dos acusados. O que fez o causídico? Retirou seu paletó e posicionou-o sobre os clientes, frustrando de vez a pretensão do cinegrafista e da repórter, a qual balbuciava pérolas do teor de "o senhor faça suas ações na Justiça". Conversando com o defensor, efetuou diversas insinuações contra a honra do mesmo e sua idoneidade moral e profissional. Com a transmissão voltando ao estúdio, o advogado foi alvo de chacota ao longo de todo o programa, o que voltou a ocorrer em outros programas do gênero da mesma emissora. Num outro destes, o apresentador, notório por seu discurso eivado de caráter neofascista, tentou invocar fundamentos técnicos para afirmar que o causídico não poderia ter tomado aquela atitude.
Quase desnecessário dizer que foi obtido, pelo defensor, o direito de resposta na Justiça para todos os programas em que tal situação foi transmitida. Suas declarações falam por si só. Minutos que a emissora poderia estar usando para cometer semelhantes arrepios à Constituição foram utilizados pelo mesmo para fundamentar cada passo de sua atitude e esclarecer a população quanto aos direitos constitucionais inerentes a todos os indivíduos. Utilizou-os, ainda, para jogar por terra qualquer questionamento quanto à sua idoneidade moral e profissional, as quais este escriba tem conhecimento suficiente para corroborar em sua plenitude. Trata-se, afinal, de brilhante professor universitário que me deu a honra de suas lições, autor de respeitadíssima obra no âmbito do direito constitucional publicada por grande editora, além de amigo de velha data. Por fim, desafiou o segundo apresentador referido nesta postagem a promoverem debate, ao vivo, quanto à matéria que o mesmo tentou utilizar para questionar as atitudes do causídico, o qual nunca ocorreu por evidente esquiva do desafiado.
Eu poderia, nesta postagem, invocar diversas razões para demonstrar quão magistral foi a atitude do colega e quão repugnável a dos programas. Poderia invocar a própria Constituição Federal, que prevê a inviolabilidade da honra e da imagem do indivíduo, e que prevê também a plena liberdade de informação jornalística, desde que observado o disposto no art. 5º, X (inviolabilidade da honra e da imagem). Poderia invocar a Lei Federal nº. 8.906/94, o Estatuto da Advocacia, que prevê o direito do advogado de exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional; de ingressar, livremente, em delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independente da presença de seus titulares, ou, ainda, em qualquer edifício ou recinto em que funcione serviço público onde o advogado deva praticar ato (dispositivos legais que demonstram o absurdo da declaração da repórter). Poderia invocar o Código de Ética da OAB, que dá respaldo em sua totalidade à conduta do causidico, notadamente quando estabelece como dever do advogado atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé. Todavia, ater-me-ei a um único fato: como referido, os suspeitos encontravam-se ainda no batalhão de polícia, o que significa que não haviam sequer sido apresentados ao delegado. Portanto, não eram sequer indiciados, quem dirá condenados. Sabe-se que a Constituição Federal prevê, ainda, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória. Ou seja: os suspeitos não haviam sequer sido indiciados, para, se fosse o caso, ao fim do inquérito policial, serem denunciados pelo Ministério Público, para que aí fossem réus em processo judicial, quando eventualmente poderiam ser condenados, e, por fim, restasse esgotada a possibilidade de recurso a instância superior. Aí sim poderiam ser tratados como culpados. Qual o desfecho do caso em tela? Foi apurado que se tratavam de pessoas trabalhadoras, humildes, que acabaram sendo liberadas logo em seguida. Qual seria o impacto na vida dessas pessoas não fosse a atitude destemida do advogado quando, sem medo de ser alvo de zombaria por parte da imprensa sensacionalista sedenta por audiência, retirou seu paletó para preservar a imagem de seus clientes que seriam vistos como execráveis pela sociedade? A imprensa teria a mesma atitude, se, ao invés de pessoas pobres, fosse o filho de um dos figurões da região quem estivesse no lugar deles?
Assim como fez a OAB em editorial assinado pelo presidente da subseção nos jornais da região à época, torno expresso meu incondicional apoio à atitude do professor, colega de profissão e amigo, cuja atitude, ao extremo oposto do que foi afirmado pelo programa, apenas enobrece e engrandece a classe na incansável luta pelo respeito aos direitos fundamentais do indivíduo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Os símbolos religiosos nas repartições públicas e a laicidade do Estado

Recente embate que me chamou a atenção é o objeto da Ação Civil Pública de nº. 2009.61.00.017604-0, que tem como partes o Ministério Público Federal e a União, e cujo trâmite se dá perante a 3ª Vara Cível Federal de São Paulo (o acompanhamento pode ser feito aqui, e notícias sobre o assunto podem ser lidas aqui e aqui). O litígio versa, em síntese, sobre os símbolos religiosos que o Poder Público insiste em manter em suas dependências à vista para toda a população - como muitos já devem ter percebido -, em absoluto desrespeito à laicidade do Estado. O MPF propôs referida ação em atendimento à representação de um cidadão particular, que teria se sentido ofendido em razão de um crucifixo em determinado órgão público. Julgando o pedido de liminar, a juíza de primeiro grau entendeu por seu indeferimento, alegando, para tanto, que um dos fundamentos do Estado laico é o respeito à liberdade religiosa; que tal laicidade não pode se expressar na eliminação de tais símbolos, mas na tolerância aos mesmos; que é natural que o Brasil, por ter uma formação histórico-cultural cristã, possua símbolos representativos de tal crença; e que o legislador constituinte, ao invocar a proteção de Deus no preâmbulo da Carta Magna, "demonstrou profundo respeito ao Justo para conceber a sociedade justa e solidária a que se propôs", em suas palavras.

Pois bem. Certa feita, este humilde escriba já havia comentado com alguém - de quem não se recorda - sobre tal assunto. Por estar agora em certa evidência, entendo apropriado dar a minha opinião quanto aos argumentos trazidos pela ilustre magistrada, bem como sobre o assunto em geral.

Em primeiro lugar, como bem apontado pela juíza, é evidente que um dos fundamentos do Estado laico é o respeito à liberdade religiosa. No mesmo sentido, mais evidente ainda é que o Poder Público, para efetivamente demonstrar tal respeito a todas as religiões, não pode se posicionar, ainda que tacitamente, partidário ou seguidor de qualquer crença religiosa. “A laicidade não pode se expressar na eliminação de tais símbolos, mas na tolerância aos mesmos” – diz a juíza. Ora, e desde quando a presença de um enorme crucifixo sobre a cabeça de um juiz numa audiência qualquer, por exemplo – situação comum -, traduz tolerância religiosa? Supondo-se que as partes sejam seguidoras de qualquer religião não-cristã, e levando-se em conta que estão em um momento de considerável tensão, na maioria das vezes, estaria sendo respeitada a tal liberdade religiosa? Justamente por dever ser o primeiro a respeitar referida liberdade de crença é que o Estado não pode, como mencionado, posicionar-se como se seguisse determinada religião.

Quanto ao disposto no preâmbulo da Constituição Federal, invocado pela magistrada, insta transcrevermos o que reza o mesmo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (grifei).

Bem, me parece óbvio que invocar a proteção de Deus não justifica, de maneira alguma, a utilização de símbolos representativos de determinada religião. Um muçulmano acredita em Deus, assim como um judeu (qual deus é de quem é outra novela que não vem ao caso, uma vez que estamos nos atendo ao texto constitucional). Assim, não lhes afeta de maneira alguma o que dispõe a Carta Magna. Entretanto, o crucifixo é um símbolo eminentemente cristão, pelo que não se confunde de maneira alguma com o dispositivo constitucional. Revela-se evidente o equívoco da douta julgadora. Ademais, se o próprio preâmbulo que invoca tal proteção divina se vale dos termos direitos individuais, liberdade, igualdade, sociedade pluralista e sem preconceitos e harmonia social, nos parece igualmente óbvio que tais valores não podem ser sacrificados sob o argumento de que a tal formação histórico-cultural cristã brasileira justificaria a situação.

Palmas para a iniciativa do Ministério Público Federal, notadamente para o procurador Jefferson Aparecido Dias, subscritor do petitório inicial.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Então tem essa garota no caixa do mercado. Já havia a visto algumas vezes naquela passadinha para pegar a "sixpack-afterwork-beer" e uma ou outra coisa. Loiras não são exatamente minha preferência, mas essa realmente me deixa consideravelmente abalado. Cabelo liso acima do ombro, olhos verdes que brilham mais que uma caixa de Eisenbahn na prateleira dizendo "me bebe". Desculpa, pra mim a comparação é extremamente válida.

E eis que lá estava eu hoje. Óbvio que dois carrinhos cheios na sua frente não são óbice para passar as compras no caixa que melhor lhe convém, certo? Tampouco o fato de os outros estarem vazios. Enfim. Quase findo o pagamento da ilustre consumidora que encontrava-se à minha frente, vejo aqueles olhos voltarem-se à minha direção. Opa. Opa. Não fui capaz de esboçar um sorriso que fosse.

- Se concentra, Diogo - o pensamento surge automaticamente.

Coloco meu rancho sobre o caixa - UMA cerveja e um pacote de pão.

- Boa tarde - diz ela.

- Olá.

Agora sai o sorrisinho. Sim, tosco da exata maneira que soa.

- Quatro e trinta e cinco.

Volto de Saturno, pego uma nota de cinco reais e lhe passo. Não sei se vocês já repararam, mas existem momentos cruciais onde olhares se cruzam quase que inevitavelmente. Um deles é quando a caixa do supermercado lhe entrega o troco e a nota, agradecendo pela preferência. Ela olha pra você. Se você está com pressa, desligado do mundo ou qualquer coisa assim, pode não perceber, mas acontece. Repare da próxima vez. Não sei qual a importância disso, mas... minto. Neste caso, sei qual a importância disso. Minha expectativa de sair do mercado com aqueles olhos verdes me dizendo "obrigado", quiçá revelando um sorriso que me fizesse perder o rumo de vez, foi abruptamente cortada por um "obrigado" sussurado com a cabeça baixa.

Tempos atrás vi um filme nacional, cujo nome não me recordo agora, onde o protagonista acabava por se apaixonar pela esposa de seu mestre acadêmico e melhor amigo, amor - ou paixão, mas isso já é outra história - que acaba por ser correspondido. O primeiro contato dos mesmos, quando ele chega à casa de seu amigo para passar uns dias, é posteriormente lembrado pelo mesmo pelo "olhar evasivo" da moça. De fato, ela simplesmente não olha diretamente em seus olhos. Tal cena, que veio à minha cabeça instantaneamente, me acompanhou pelas plataformas do estabelecimento sobredito até passar pelo estacionamento e chegar ao carro.

- O que vou comprar amanhã? - sorri comigo mesmo e dei a partida.