terça-feira, 1 de setembro de 2009

Os símbolos religiosos nas repartições públicas e a laicidade do Estado

Recente embate que me chamou a atenção é o objeto da Ação Civil Pública de nº. 2009.61.00.017604-0, que tem como partes o Ministério Público Federal e a União, e cujo trâmite se dá perante a 3ª Vara Cível Federal de São Paulo (o acompanhamento pode ser feito aqui, e notícias sobre o assunto podem ser lidas aqui e aqui). O litígio versa, em síntese, sobre os símbolos religiosos que o Poder Público insiste em manter em suas dependências à vista para toda a população - como muitos já devem ter percebido -, em absoluto desrespeito à laicidade do Estado. O MPF propôs referida ação em atendimento à representação de um cidadão particular, que teria se sentido ofendido em razão de um crucifixo em determinado órgão público. Julgando o pedido de liminar, a juíza de primeiro grau entendeu por seu indeferimento, alegando, para tanto, que um dos fundamentos do Estado laico é o respeito à liberdade religiosa; que tal laicidade não pode se expressar na eliminação de tais símbolos, mas na tolerância aos mesmos; que é natural que o Brasil, por ter uma formação histórico-cultural cristã, possua símbolos representativos de tal crença; e que o legislador constituinte, ao invocar a proteção de Deus no preâmbulo da Carta Magna, "demonstrou profundo respeito ao Justo para conceber a sociedade justa e solidária a que se propôs", em suas palavras.

Pois bem. Certa feita, este humilde escriba já havia comentado com alguém - de quem não se recorda - sobre tal assunto. Por estar agora em certa evidência, entendo apropriado dar a minha opinião quanto aos argumentos trazidos pela ilustre magistrada, bem como sobre o assunto em geral.

Em primeiro lugar, como bem apontado pela juíza, é evidente que um dos fundamentos do Estado laico é o respeito à liberdade religiosa. No mesmo sentido, mais evidente ainda é que o Poder Público, para efetivamente demonstrar tal respeito a todas as religiões, não pode se posicionar, ainda que tacitamente, partidário ou seguidor de qualquer crença religiosa. “A laicidade não pode se expressar na eliminação de tais símbolos, mas na tolerância aos mesmos” – diz a juíza. Ora, e desde quando a presença de um enorme crucifixo sobre a cabeça de um juiz numa audiência qualquer, por exemplo – situação comum -, traduz tolerância religiosa? Supondo-se que as partes sejam seguidoras de qualquer religião não-cristã, e levando-se em conta que estão em um momento de considerável tensão, na maioria das vezes, estaria sendo respeitada a tal liberdade religiosa? Justamente por dever ser o primeiro a respeitar referida liberdade de crença é que o Estado não pode, como mencionado, posicionar-se como se seguisse determinada religião.

Quanto ao disposto no preâmbulo da Constituição Federal, invocado pela magistrada, insta transcrevermos o que reza o mesmo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (grifei).

Bem, me parece óbvio que invocar a proteção de Deus não justifica, de maneira alguma, a utilização de símbolos representativos de determinada religião. Um muçulmano acredita em Deus, assim como um judeu (qual deus é de quem é outra novela que não vem ao caso, uma vez que estamos nos atendo ao texto constitucional). Assim, não lhes afeta de maneira alguma o que dispõe a Carta Magna. Entretanto, o crucifixo é um símbolo eminentemente cristão, pelo que não se confunde de maneira alguma com o dispositivo constitucional. Revela-se evidente o equívoco da douta julgadora. Ademais, se o próprio preâmbulo que invoca tal proteção divina se vale dos termos direitos individuais, liberdade, igualdade, sociedade pluralista e sem preconceitos e harmonia social, nos parece igualmente óbvio que tais valores não podem ser sacrificados sob o argumento de que a tal formação histórico-cultural cristã brasileira justificaria a situação.

Palmas para a iniciativa do Ministério Público Federal, notadamente para o procurador Jefferson Aparecido Dias, subscritor do petitório inicial.